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domingo, 5 de janeiro de 2014

Deixei de fumar quando decidi não deixar de fumar

Fumei dos 15 aos 28 anos. Deixei oficialmente de fumar no início de 1980, ano em que nasceu o meu primeiro filho, mas não sei ao certo em que dia isso aconteceu. Já saberemos porquê.

Comecei a fumar talvez no quinto ano do Liceu, em Bragança, comprando cigarros avulso na mercearia da Avenida do Sabor. Primeiro sem filtro, Definitivos e Provisórios, depois com mais dinheiro, regularmente com filtro, Porto e SG. Sempre avulso, normalmente dois cigarros (era o mínimo) de cada vez, excepto quando caia do céu uma notita de 20 escudos...e dividia um maço com o meu primo Manuel António.

Eventualmente pela irregularidade deste prazer ser resultante do meu igualmente irregular cash-flow, nunca cheguei a ter um vício muito arreigado. Era quando havia p'ra tabaco e viva o velho! Cravar não me era de todo confortável pela incapacidade sentida de, em tempo razoável, saldar a dívida ao cravado. Mesmo quando já financeiramente saudável, um maço dava-me para dois três dias.

Andava já na faculdade quando as primeiras comunicações científicas estabeleciam correlações inequívocas entre a incidência de cancro e o tabagismo. Respondi a estas notícias de imediato e decidi pela primeira vez assumidamente deixar de fumar. Nada de pastilhas nem pensos de nicotina, nada dessas "mariquices" me serviriam de ajuda: seria de um dia para o outro. E pronto, assim foi. A abstinência durou pouco mais de uma semana...  Ou porque o grupo de amigos não ajudou, ou porque me fazia "falta" para estudar, ou porque “um cigarro só não faz mal”, lentamente recomecei a fumar.

A segunda tentativa foi mais duradoura que a primeira. A paragem foi também repentina e igualmente influenciada por uma consciencialização dos danos que me fazia a mim próprio. Lembro-me de se me repetir incontrolável como um eco aquela frase muito forte que um dia me acordou a consciência "Quem fuma não pensa e quem pensa não fuma!" Como isto fazia sentido! Havia que parar e pronto, ponto final.

Sofri. Tão racional era a decisão de parar de fumar como a de continuar fumador, desde que tomadas com toda a informação e conhecimento disponível nesse momento. Racionais sim, mas não necessariamente igualmente acertadas. Mas, assumido o risco, era uma questão de relação custo-benefício. Morre-se de tudo e por vezes por coisas de nada! Também é preciso haver algum prazer na vida! Ao fim de um mês de luta decidi continuar a gozar o prazer de fumar!

Continuava com o meu maço de dois em dois dias quando fui chamado para a tropa. Em Lamego, para as  "Operações Especiais", vulgarmente chamados Rangers! A Recruta passá-la-ia no Aquartelamento de Penude, pequena povoação situada encosta acima, a uns 5km a sul de Lamego, onde o conforto das instalações era pouco mais que mínimo.

Os seis meses de Recruta foram duros mas deram-me uma forma física como nunca me lembrava de ter tido. Já Aspirante a Oficial tinha o meu quarto na Messe de Oficiais e gozava agora de algum conforto e tempo livre que não tivera enquanto Cadete. Reparei que o meu perfil de fumador era algo estranho, irregular ao longo da semana. Um maço à 2ª feira, dois durante a semana até sexta ao fim da tarde quando apanhava o comboio para vir passar o fim-de-semana a casa, durante o qual praticamente não fumava.  Este regime, num vício, não fazia para mim grande sentido.

Este foi o primeiro sintoma de que a minha dependência da nicotina tinha uma grande componente psicológica, eventualmente maior que a componente física. Igualmente interessante/revelador foi constatar que o acto de puxar por um cigarro era desencadeado muitas vezes por simpatia, porque alguém ao meu lado o fazia. À mesa do café numa roda de colegas depois de almoço, a seguir ao café era essencial saborear um cigarro. Constatei algumas vezes que se alguém que chegasse mais tarde puxasse de um cigarro, eu fazia o mesmo num gesto automático,  mesmo se tivesse acabado de fumar um. Havia portanto cigarros que eu fumava, não porque estivesse carente de nicotina, mas apenas para fazer companhia. E isto para mim não fazia sentido algum.

Verifiquei também que quando estava a fumar a minha pulsação cardíaca aumentava. Tínhamos nessa altura uma maior sensibilidade para este assunto da pulsação cardíaca pois fazíamos semanalmente o teste de Cooper.  Sabia que em repouso a minha pulsação era cerca de 50 batidas por minuto. Para saber exactamente o efeito do cigarro uma tarde enquanto descansava no meu quarto fui medindo a variação da pulsação enquanto fumava. Durante as primeiras duas passas nenhum efeito foi detectável mas a partir da terceira já havia aumento de batimento cardíaco que ao fim de pouco tempo chegou às 88 pulsações por minuto. Concluí que o meu coração acelerava, não para repor o consumo de oxigénio nos músculos, mas apenas para compensar com maior fluxo a baixa de teor em oxigénio que o meu sangue tinha enquanto fumava. Este esforço para mim não fazia sentido algum.

Estas constatações levaram-me ao seguinte raciocínio e tomar a seguinte decisão:
- Se o fumar me fazia mal, e se eu fumava por vezes sem disso ter real necessidade física, então deveria pensar cada cigarro que metesse à boca. Ou esse cigarro me iria dar efectivo prazer ou voltava para o maço. Fumar por fumar ou por simpatia ou para aliviar do que quer que fosse, tinha que acabar.  Mas todo o cigarro que me desse prazer, fumaria.

E nos primeiros dias verifiquei que dos 10 a 12 cigarros habituais já só fumava 7 ou 8. Não foi tanto como tinha pensado que iria ser mas já fora um progresso. Mantive a disciplina da minha decisão bem efectiva e ao fim de um mês já me ficava em média pelos 6 cigarros por dia. Isto era basicamente metade do que fumava antes e já me dei por satisfeito por ter valido a pena. Pena que não era nenhuma pois continuava a fumar os cigarros que me davam real prazer. Tinha era deixado de fumar os cigarros estúpidos, sem razão de ser…

Mantive obviamente a decisão. A estatística do meu consumo pouco variou nos meses seguintes mas pelo sexto mês do regime reparei que havia dias em que só fumava 3 cigarros, isto é, só fumava os cigarros a seguir ao café.  Pensei  que deveria ser esse o meu mínimo dos mínimos, pois esses cigarros sabiam-me pela vida. Eram por assim dizer “sagrados”.

Durante o meio ano seguinte os dias de 3 cigarros foram aumentando e convenci-me de que tinha atingido de facto o meu nível óptimo de fumador consciente. Três cigarros não faziam nem bem nem mal e cada um deles me dava grande prazer.

Até que, ou porque um dia tomava menos cafés, ou porque ficava sem cigarros em casa e não me apetecia sair para ir comprar, ou porque estava a chover e não saía para fumar (a Guida estava grávida portanto em casa não), etc, etc, nesses dias não fumava 3 mas apenas dois ou mesmo só um cigarro.


O nada aconteceu naturalmente, quase sem dar por nada.

sábado, 4 de janeiro de 2014

É preciso acreditar

As pessoas precisam mesmo de acreditar. Acreditar em qualquer coisa! Por necessidade, por conforto.

Tudo serve! Se não há pachorra para acreditar em crendices religiosas ou pró-religiosas, acredita-se em números, na sorte ou no azar dos números! Dos números, imagine-se!

Aqui está um pequeno texto bem crente relativo ao 7:
“O número SETE é com certeza o mais presente em toda filosofia e literatura desde os tempos imemoriais até os nossos dias.
O número SETE é  perfeito e poderoso, afirmou Pitágoras, matemático e Pai da Numerologia. É também considerado um número mágico. É um número místico por excelência. Indica o processo de passagem do conhecido para o desconhecido.
O SETE é uma combinação do TRÊS com o QUATRO; O TRÊS, representado por um triângulo, é o Espírito; o QUATRO, representado por um quadrado, é a Matéria. O SETE podemos dizer que é Espírito na Terra, apoiado nos quatro Elementos, ou a Matéria “iluminada pelo Espírito”. É a Alma servida pela Natureza.
O número QUATRO que simboliza a Terra, associado ao TRÊS, que simboliza o Céu, permite inferir que o SETE representa uma Totalidade em Movimento ou um Dinamismo Total, isto é, a Totalidade do Universo em Movimento.”

A eloquência, a profundidade filosófica, o paralelismo lógico deste texto! Um primor, um tratado, não é?
Ou na sorte ou azar de certas cores! Das cores, vejam bem! Sim, vejam bem pois os invisuais a isso sendo imunes, estão-se, obviamente, marimbando para estas tretas…

Qualquer dia, quando a cultura musical for tão comum como a da matemática (pois só podemos tirar (e espalhar) ilações sobre números porque, minimamente, toda a gente sabe o que isso é), qualquer dia dizia eu, vai aparecer uma corrente crente segundo a qual a nota Lá (de 880Hz, 440Hz, 220Hz, ou outro Lá qualquer ) dá muito boa sorte a quem a oiça ou reproduza, assim como os Ré, os Sol, os Dó, ou os Fá, por exemplo. Os Si e os Mi é que são mais dados ao azar!! 

Quando esse dia chegar, as gaitas, os toques de telemóvel, as buzinas dos automóveis em Si ou em Mi não vendem, são "monos" rejeitados pelo mercado! Assobiar em Si ou em Mi em público é mal visto, e assim por diante!

Esse dia, por força da música e para bem da humanidade, mais tarde ou mais cedo vai chegar. Depois não digam que não vos avisei! Sim, eu avisei!


E isto porque acreditar é uma necessidade, eu adiantaria, fisiológica!

quinta-feira, 4 de março de 2010

A bicicleta

Esta história não se passou comigo. Passou-se com o meu amigo Fernando que ma contou numa roda de café há vinte anos atrás, tinha ela acontecido havia pouco tempo. Desde então, por inúmeras vezes me tem vindo à lembrança e, sempre que vem a talhe de foice, a tenho contado entre amigos. Acho-a deliciosa. Vou por isso pedir licença ao Fernando e narra-la uma vez mais, agora aqui.

O Fernando e a família eram visita regular, em tempo de férias de verão, duma quinta no Alentejo, propriedade de uns seus tios afastados de Lisboa onde viviam a meio tempo. Fazendo termo com a estrada nacional, tinha nesta uma entrada feita de um portal de muros brancos, com dois rododendros rosa em vez de portão, logo seguidos de uma alameda de amendoeiras e pessegueiros ladeando o caminho até ao pátio em frente à casa.

Era um Monte bem arranjado com uma casa de dois pisos, uma horta e jardim dos dois lados de um grande tanque agora transformado em piscina. Além de um lagar, uma vacaria e acomodações para outros animais, constituíam partes da exploração agrícola uma vinha, um olival, vários hectares de trigo e umas centenas largas de sobreiros. Como herdade, era bastante grande para manter alguns trabalhadores permanentes e um feitor.
Que era o Sr. Francisco: Homem dos seus cinquenta e muitos, tinha de casa mais de trinta anos. E esta, aproximadamente, era também a idade da sua bicicleta. Muito conservada, era ainda hoje o seu favorito e único meio de transporte para todo o lado, tirando o tractor.

Do terraço, à entrada do segundo piso, avistava-se todo o campo até à estrada e uma ampla parte da propriedade à volta da casa. Uma imagem das férias que o meu amigo guardava com gosto na memória, era a do Sr. Francisco, regressando da vila, ao longe, a entrar na quinta subindo pela leve inclinação da alameda das amendoeiras, silenciosamente, vagarosamente, até chegar, alçar a perna e se deter junto da escadaria da casa.

Aconteceu que, no verão do ano anterior àquele em que nos contava esta história, chegados à quinta viram, pasme-se!, o Sr. Francisco subir a dita alameda, não de bicicleta, não tão vagarosa e muito menos silenciosamente, mas em cima de uma motorizada, nova em folha.

-"Ainda me estou a habituar, mas tinha que ser" respondeu o Sr. Francisco, interpelado pelo meu amigo em jeito de parabéns pelo progresso verificado. -"Pois então não era já tempo Sr. Francisco? Claro que sim!" Apoiou o Fernando sentindo uma certa mágoa, quiçá um arrependimento, na expressão do ti Francisco. -"Vamos andando e vamos vendo", rematou ele e, desse modo, a conversa entre ambos.

E assim, aquela quase bucólica imagem do Feitor rolando de bicicleta pelo caminho da herdade, foi-se desvanescendo na lembrança do meu amigo.

As férias do verão seguinte esperavam-nos com uma nova surpresa: mal chegados, os seus tios comunicaram-lhes entre sorrisos: -"Sabem uma coisa? O Feitor vendeu a mota e voltou para a sua bicicleta! É verdade! Parece que não se ajeitou". "Não se ajeitou?" repetiu para si o meu amigo sem perceber a dificuldade de, neste caso, se passar de burro para cavalo. "Tenho de tirar isso a limpo com o ti Francisco", pensou.

Já refeito do choque da inesperada notícia, o Fernando sentiu até um certo contentamento com a esperança breve de recuperar uma imagem cuja recordação lhe era agradável. Mas queria saber, tinha que saber, pelo próprio as razões do, aparentemente ilógico, retrocesso na decisão.
Logo que apanhou o Feitor de feição foi falar com ele. -"Então Sr. Francisco, outra vez de bicicleta?" -"É verdade Sr. Fernando." -"Não gostou da motorizada? Não andava bem?" -"Ela andava." -"E então?" Encolhendo os ombros o homem justificou-se. -"Eu é que chegava sempre antes de querer..."

domingo, 29 de novembro de 2009

O Nosso Muro de Berlim



Em Setembro de 1988, enquanto estava em estágio na República Federal Alemã, a Guida foi-me visitar. Dos muitos passeios que fizemos, um foi a Berlim e Praga, com vistos da República Checa nos nossos passaportes que, avisada e atempadamente, garantimos antes de sair de Portugal. Os vistos eram precisos, não para atravessar a RDA indo da RFA para Berlim Oeste - essa “ilha” da RFA no meio do “mar” RDA - mas para entrar na República Checa. A Berlim Leste, ao outro lado do Muro, não iríamos por falta de tempo e de interesse, pois queriamos ver Dresden, em trânsito como era apenas permitido, e visitar Praga, tudo nesse fim-de-semana.


Em Berlim Oeste fizemos o habitual sight-seeing tour e, num dos poucos passeios a pé que se lhe seguiram, fomos meditar para uma espécie de miradouro do Muro, junto do qual passava um dos muros de segurança erguidos paralelos ao Muro de Berlim própriamente dito. Aí relembrámos, sempre em silêncio, sem palavras, as atrocidades nazis, o atraso estúpido dos regimes comunistas de leste e, quase em carne viva, as vítimas da liberdade que o Muro, aquele mesmo, ali mesmo à nossa frente, já tinha feito e continuaria a fazer. Obviamente deixámos nele escritas as nossas mensagens de “morte ao muro!” e “abaixo o muro!” entre muitas outras assim, que o tingiam de alto a baixo e em todo o seu comprimento.


De uma das fendas que o muro exterior tinha, trouxemos uma pequena pedra, pouco maior que um dedal, que tinha um bocadinho de tinta cinza-azulada no lado mais plano.


A pedrinha, à qual saudosa e carinhosamente chamávamos o Nosso Muro de Berlim, chegou a casa no meio das bujigangas da nossa viagem. Contráriamente à maior parte dos “calhaus” que, para recordação, eu teimo em transportar das serras e praias que visitamos – alguns bem pesados – esta pedra era muito pequenina, um pedacinho de cimento apenas. Nem dava para nela se escrever Berlim-1988, para a documentar. Portanto rapidamente desapareceria se não fosse tratada como uma “relíquia”, posta sobre um pedestal ou numa caixinha transparente a fazer de redoma.


Numa caixinha a pedra andaria aos trambolhões mal lhe pegássemos, para a ver ou mostrar aos amigos. Optei pela primeira solução. Depois de umas tentativas de escolha de materiais qualificáveis para o efeito, resolvi usar, para o improvisado pedestal, uma tampa em acrílico de um frasco de perfume da Guida. Tinha o aspecto de um vidro grosso, dobrado em “L”, maior de um lado que do outro, transparente, cristalina. Enfim, a tampa tinha um design tal, que, deitada, parecia mesmo feita para aquilo!


Colei-lhe o bocadinho do Muro numa gota de cola termoplástica. Ficou com um certo aspecto de “souvenir” profissional, mais até do que era desejável, mas, contudo, apresentável sem enxovalhar muito o Muro, e passou a bibelot numa das prateleiras altas da estante do escritório.


Um belo dia, alguns anos depois, ao tirar um livro lá de cima sem recurso a cadeira ou escadote, mandei ao chão a peanha com o Muro de Berlim, que no acto se soltou da cola, e se fez em dois pedaços. Peguei nas duas peças com cuidado e, enquanto não arranjava vagar para refazer a minha “obra de arte”, coloquei-as em cima da cómoda da sala, no meio dos nossos retratos de família.


Passaram-se dias, mais esquecidos que ocupados, até que numa dada altura reparei que uma das peças – o Muro propriamente dito - tinha desaparecido de cima da cómoda.
Fui ter com a Guida ao escritório.
- Guida, mexeste no nosso Muro de Berlim?

A Guida não tinha mexido em nada e agora que eu perguntava reparava que já não via a pedra havia dias.

- Pergunta à Conceição, com as limpezas pode tê-lo mudado de sítio.


A Conceição, então uma senhora de setenta e muitos anos, era nossa empregada de casa havia mais de 20 anos, desde um pouco antes do nascimento da Inês.


A palavra “limpezas” quando invocada enquanto havia algo desaparecido em casa fazia-me entrar em pânico. Temi o pior e, em pleno stress póstraumático, chamei:

- Ó Dona Conceição.

- Sim, Sr. Engenheiro.

Respondeu-me da copa, estava a passar a ferro. Perguntei então da sala com um tom de voz muito suave, como quem pede um favor, como quem faz uma prece.

- Reparou num pedacinho de cimento que estava em cima da cómoda, no meio das fotografias?

- Cimento? Ah, sim, Sr. Engenheiro. Limpei tudo antesdontem.


Levei as mãos à cara enquanto fechava os olhos e respirava fundo sustendo a respiração. A boa Dona Conceição, estranhando o meu silêncio perguntou enquanto se assomava à porta da sala.

- Porquê, Sr. Engenheiro? - Percebia-se-lhe na voz um receio de que teria feito uma asneira. - Fazia-lhe falta?

Expirei prolongadamente. Ainda mal refeito, retorqui.

- Não, nada, Conceição. Aquele cimento - suspirei – nunca fez falta nenhuma!

quinta-feira, 18 de junho de 2009

A caçada


Pela passagem no exame do 5º ano do Liceu, eu e o meu primo Manuel António combinámos (o que um tinha o outro também tinha que ter...) pedir de prenda uma “pressão de ar”. O pai dele, que era caçador devoto, alinhou prontamente na ideia. O meu não achou piada nenhuma e, sem nunca a ter recusado, tentou convencer-me da minha má escolha. E deu-se início a mais um dos nossos normais períodos de discussão, que duravam dias, cada um de nós a puxar para seu lado, a ver quem resistia por mais tempo.

O modelo a eleger, por recomendação do pai do meu primo, seria uma Diana 27. Nada menos de 17.25 polegadas de cano estriado! Uma referência de precisão nas espingardas de pressão da sua classe. Os melhores armeiros, e também com preço mais em conta por serem conhecidos do meu tio comissário da polícia, eram no Porto.

Enquanto eu e meu pai nos decidíamos foi encomendada a do meu primo, que já não aguentava mais esperar. Foi mesmo o meu pai quem tratou do assunto com o meu tio. E um dia, ainda eu e o meu pai não tinhamos desatado a pega, lá chegou ela na carreira do Cabanelas! Que bonita! Novinha em folha, com uma etiqueta beje pendurada no aro de protecção do gatilho e a cheirar a óleo de máquina!
Excitadíssimos, eu e o meu primo experimentámo-la até quase gastar uma caixa de chumbos. Era extraordinária. Acertava numa carica a dez passos! Que precisão!
Uma semana depois o meu pai cedia e mandava vir a minha pelo mesmo caminho.

A caça aos pássaros, pardais na maioria, e o tiro, rapidamente se tornaram no meu desporto favorito e todos os tostões que amealhava eram agora repartidos para ir à mercearia comprar cigarros Porto a vulso (quem é que chegava ao preço de um maço inteiro? Só no Natal ou nos anos!), e para chumbos, também a vulso, claro, na Casa Guerra – Caça e Pesca da Rua Alexandre Herculano, dos “Kugleun...Made in Germany”, marca Diabolo, os melhores, os únicos em que acreditávamos.

Para além de saídas frequentes aos fins de tardes aos passarinhos, que rendiam regularmente uma boa meia duzia de vítimas engatadas em rosário (as tíbias de uma nas narinas da seguinte), também fazia parte organizarmos um torneio de tiro aos pratos aí uma vez por mês, quando havia chumbos para isso. Os “pratos” eram para este efeito as latas cilíndricas de conservas, de salsichas, ou de pêssego em calda “Melocotones” etc. As de sardinha e de atum não prestavam para o efeito. Cada um de nós era alternadamente lançador e atirador. O lançador, posicionado por detrás do muro da vinha do Mordomo em plena Av. do Sabor onde moravamos, atirava ao ar aí a uns cinco ou seis metros de altura, uma lata por cada ordem de “larga!” que o atirador lhe gritava. O som claro e característico do embate do chumbo na lata a cada tiro certeiro, era traduzido na sua pontuação e esta registada no fim de cada série. O atirador tinha de fazer tiro em dois estilos: Primeiro partindo da posição de arma à cara, depois partindo da posição de braços em baixo. Estes torneios eram tomados muito a sério. E obtínhamos, perante a óbvia dificuldade em acertar com um simples chumbo numa lata em movimento, resultados impressionantes de cinquenta por cento de acertos ou mais no somatório dos dois estilos. Por vezes faziamos o pleno de cinco em cinco. Era muito divertido e bom para o nosso ego pois, para além de caçadores absolutamente letais, consideravamo-nos exímios como atiradores! Sentiamos que estavamos no auge ou lá perto!

As caçadas de fim de tarde eram interessantes exercícios de tática, precisão e concentração. Cinco, dez, raramente mais, pássaros de cada vez. Serviam também para, durante a escapadela e quando havia, fumar tranquilamente um cigarrito longe dos olhos de toda a gente. Terminavam quando a tarde ou os chumbos chegavam ao fim.

Eram, na esmagadora parte das vezes, caçadas individuais, pois nestas coisas de caça e pesca a companhia só atrapalha. Assim passámos um ano eu e o meu primo até que, um belo dia, já caçadores formados e afirmados, respeitados um pelo outro e em toda a Avenida do Sabor, resolvemos organizar uma caçada a dois aos passarinhos. Mas uma coisa a sério: Sair de casa muito cedo, caçar descendo pelos caminhos das quintas e matas até ao Sabor, encontrar à hora de almoço para merendarmos juntos, regressar a casa ao fim da tarde. Bem, dessa vez entrei em casa com um “rosário” de 42 passarinhos dependurados no pescoço, em voltas que me chegavam aos joelhos. O meu primo, outros tantos.
A Diana 27 não voltou mais a disparar contra nada vivo.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Os ritmos estão cá dentro



Os ritmos são mentais, isto é, são descobertos, pressentidos, organizados pela nossa mente.
Esta afirmação parece-me ser pacífica. Como teorema já me parece de menos fácil demonstração.
A ser assim, então a nossa mente, fisicamente, deve ter estruturas internas (dendrites ou outras estruturas base dos neurónios, por exemplo) que estejam ou possam ser ligados com uma teia de ligações onde esse ritmo se encontra, ou pode ser reproduzido, depois de algum esforço de adaptação, proporcionando então a sua descoberta.
Seria bonito poder ver em tempo real o nosso cérebro a organizar-se em ritmo de valsa, logo depois em ritmo de samba e regresso ao primeiro, tudo isto com visíveis padrões organizacionais ou estruturais, específicos! Lindo!
Corolário deste teorema: A Lógica é um ritmo.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Confissão


Há dias matei um bonsai.
Pronto, está dito!

Uma Chamaecyparis obtusa nana gracilis, nem mais nem menos! Tinha mais de 7 anos de idade e era da família dos ciprestes. Em casa era tratada por Chaminha.

Foi um bonsaicídio involuntrário, tenho que dizer em minha defesa. Assumo que eu o matei porque não acredito na hipótese de suicídio, embora, palavra de honra!, tenha feito tudo o que os meios mais entendidos nestas anãs, recomendam a alguém que assume a responsabilidade de as adoptar. Nunca lhe faltou terra húmida, folhinhas borrifadas uma vez por dia, lugar frente a uma janela com luz directa, todos os mimos...Um zêlo, como mandava a cartilha, que até já tinha gerado lá em casa alguns comentários menos abonadores da minha normalidade!

Ao apará-la com a minha tesoirinha própria (acho eu, pois tinha uma forma anormal e vinha no kit-bonsai!), deixei-lhe três Edas (ramos) baixos, um dos quais torci todo de trás para um dos lados (atrás não ficava nada bem!), com recurso a um arame grosso que também vinha no kit. Este suplício proporcionava um grande resultado ao evidenciar bem as curvas do seu Tachiagari (o baixo-tronco). Assim ela crescesse, que ia ficar, linda!

O resto da copa (a Shin), mais ou menos do meio para cima, desbastei na mesma medida para não haver um desequilíbrio na densidade de folhagem entre os ramos de baixo e esta zona. Qualquer presença ou ameaça de desequilíbrio e o meu bonsai seria remetido para a classe das plantas mal tratadas, com as correspondentes e necessárias consequências na classificação do tratador. E eu prezava-me como promissor tratador de bonsais.

Observava-a regular e prolongadamente, tentando vislumbrar um verde rejuvenescido, descobrir se haveria umas folhinhas novas a rebentar, sinais seguros de que se estava a dar bem. Fotogafava-a até, pois, tendo estudado que era de raça de crescer pouco e muito devagar, aceitava que me fosse difícil, se não impossível, ver diferenças dia a dia. Nunca descortinei um sinal dela para mim neste sentido.

Um dia, lembro-me bem, pareceu-me que estava a começar a mostrar uma cor verde mais pálida! Não, não era da luz! As fotos não enganavam!
Redobrei os meus cuidados: observação duas vezes ao dia (pelo menos), outras tantas borrifadelas (que não lhe faltasse nada!).
Mas nada! Definhou tão galopantemente que em menos de uma semana estava toda da côr da terra!

E lá foram os seus restos vegetais juntar-se aos demais, no compostor.

Se calhar cortei-lhe raizes a mais quando a mudei do seu vaso do horto para o pote bonsai (perdão, para o Hachi). Não, claro que não cortei aí mais do que proporcionalmente já lhe tinha aparado na copa. Como mandam as regras. Mas, ...não sei!

Não viveu o bastante para me tirar desta dúvida!