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domingo, 29 de novembro de 2009

O Nosso Muro de Berlim



Em Setembro de 1988, enquanto estava em estágio na República Federal Alemã, a Guida foi-me visitar. Dos muitos passeios que fizemos, um foi a Berlim e Praga, com vistos da República Checa nos nossos passaportes que, avisada e atempadamente, garantimos antes de sair de Portugal. Os vistos eram precisos, não para atravessar a RDA indo da RFA para Berlim Oeste - essa “ilha” da RFA no meio do “mar” RDA - mas para entrar na República Checa. A Berlim Leste, ao outro lado do Muro, não iríamos por falta de tempo e de interesse, pois queriamos ver Dresden, em trânsito como era apenas permitido, e visitar Praga, tudo nesse fim-de-semana.


Em Berlim Oeste fizemos o habitual sight-seeing tour e, num dos poucos passeios a pé que se lhe seguiram, fomos meditar para uma espécie de miradouro do Muro, junto do qual passava um dos muros de segurança erguidos paralelos ao Muro de Berlim própriamente dito. Aí relembrámos, sempre em silêncio, sem palavras, as atrocidades nazis, o atraso estúpido dos regimes comunistas de leste e, quase em carne viva, as vítimas da liberdade que o Muro, aquele mesmo, ali mesmo à nossa frente, já tinha feito e continuaria a fazer. Obviamente deixámos nele escritas as nossas mensagens de “morte ao muro!” e “abaixo o muro!” entre muitas outras assim, que o tingiam de alto a baixo e em todo o seu comprimento.


De uma das fendas que o muro exterior tinha, trouxemos uma pequena pedra, pouco maior que um dedal, que tinha um bocadinho de tinta cinza-azulada no lado mais plano.


A pedrinha, à qual saudosa e carinhosamente chamávamos o Nosso Muro de Berlim, chegou a casa no meio das bujigangas da nossa viagem. Contráriamente à maior parte dos “calhaus” que, para recordação, eu teimo em transportar das serras e praias que visitamos – alguns bem pesados – esta pedra era muito pequenina, um pedacinho de cimento apenas. Nem dava para nela se escrever Berlim-1988, para a documentar. Portanto rapidamente desapareceria se não fosse tratada como uma “relíquia”, posta sobre um pedestal ou numa caixinha transparente a fazer de redoma.


Numa caixinha a pedra andaria aos trambolhões mal lhe pegássemos, para a ver ou mostrar aos amigos. Optei pela primeira solução. Depois de umas tentativas de escolha de materiais qualificáveis para o efeito, resolvi usar, para o improvisado pedestal, uma tampa em acrílico de um frasco de perfume da Guida. Tinha o aspecto de um vidro grosso, dobrado em “L”, maior de um lado que do outro, transparente, cristalina. Enfim, a tampa tinha um design tal, que, deitada, parecia mesmo feita para aquilo!


Colei-lhe o bocadinho do Muro numa gota de cola termoplástica. Ficou com um certo aspecto de “souvenir” profissional, mais até do que era desejável, mas, contudo, apresentável sem enxovalhar muito o Muro, e passou a bibelot numa das prateleiras altas da estante do escritório.


Um belo dia, alguns anos depois, ao tirar um livro lá de cima sem recurso a cadeira ou escadote, mandei ao chão a peanha com o Muro de Berlim, que no acto se soltou da cola, e se fez em dois pedaços. Peguei nas duas peças com cuidado e, enquanto não arranjava vagar para refazer a minha “obra de arte”, coloquei-as em cima da cómoda da sala, no meio dos nossos retratos de família.


Passaram-se dias, mais esquecidos que ocupados, até que numa dada altura reparei que uma das peças – o Muro propriamente dito - tinha desaparecido de cima da cómoda.
Fui ter com a Guida ao escritório.
- Guida, mexeste no nosso Muro de Berlim?

A Guida não tinha mexido em nada e agora que eu perguntava reparava que já não via a pedra havia dias.

- Pergunta à Conceição, com as limpezas pode tê-lo mudado de sítio.


A Conceição, então uma senhora de setenta e muitos anos, era nossa empregada de casa havia mais de 20 anos, desde um pouco antes do nascimento da Inês.


A palavra “limpezas” quando invocada enquanto havia algo desaparecido em casa fazia-me entrar em pânico. Temi o pior e, em pleno stress póstraumático, chamei:

- Ó Dona Conceição.

- Sim, Sr. Engenheiro.

Respondeu-me da copa, estava a passar a ferro. Perguntei então da sala com um tom de voz muito suave, como quem pede um favor, como quem faz uma prece.

- Reparou num pedacinho de cimento que estava em cima da cómoda, no meio das fotografias?

- Cimento? Ah, sim, Sr. Engenheiro. Limpei tudo antesdontem.


Levei as mãos à cara enquanto fechava os olhos e respirava fundo sustendo a respiração. A boa Dona Conceição, estranhando o meu silêncio perguntou enquanto se assomava à porta da sala.

- Porquê, Sr. Engenheiro? - Percebia-se-lhe na voz um receio de que teria feito uma asneira. - Fazia-lhe falta?

Expirei prolongadamente. Ainda mal refeito, retorqui.

- Não, nada, Conceição. Aquele cimento - suspirei – nunca fez falta nenhuma!

quinta-feira, 18 de junho de 2009

A caçada


Pela passagem no exame do 5º ano do Liceu, eu e o meu primo Manuel António combinámos (o que um tinha o outro também tinha que ter...) pedir de prenda uma “pressão de ar”. O pai dele, que era caçador devoto, alinhou prontamente na ideia. O meu não achou piada nenhuma e, sem nunca a ter recusado, tentou convencer-me da minha má escolha. E deu-se início a mais um dos nossos normais períodos de discussão, que duravam dias, cada um de nós a puxar para seu lado, a ver quem resistia por mais tempo.

O modelo a eleger, por recomendação do pai do meu primo, seria uma Diana 27. Nada menos de 17.25 polegadas de cano estriado! Uma referência de precisão nas espingardas de pressão da sua classe. Os melhores armeiros, e também com preço mais em conta por serem conhecidos do meu tio comissário da polícia, eram no Porto.

Enquanto eu e meu pai nos decidíamos foi encomendada a do meu primo, que já não aguentava mais esperar. Foi mesmo o meu pai quem tratou do assunto com o meu tio. E um dia, ainda eu e o meu pai não tinhamos desatado a pega, lá chegou ela na carreira do Cabanelas! Que bonita! Novinha em folha, com uma etiqueta beje pendurada no aro de protecção do gatilho e a cheirar a óleo de máquina!
Excitadíssimos, eu e o meu primo experimentámo-la até quase gastar uma caixa de chumbos. Era extraordinária. Acertava numa carica a dez passos! Que precisão!
Uma semana depois o meu pai cedia e mandava vir a minha pelo mesmo caminho.

A caça aos pássaros, pardais na maioria, e o tiro, rapidamente se tornaram no meu desporto favorito e todos os tostões que amealhava eram agora repartidos para ir à mercearia comprar cigarros Porto a vulso (quem é que chegava ao preço de um maço inteiro? Só no Natal ou nos anos!), e para chumbos, também a vulso, claro, na Casa Guerra – Caça e Pesca da Rua Alexandre Herculano, dos “Kugleun...Made in Germany”, marca Diabolo, os melhores, os únicos em que acreditávamos.

Para além de saídas frequentes aos fins de tardes aos passarinhos, que rendiam regularmente uma boa meia duzia de vítimas engatadas em rosário (as tíbias de uma nas narinas da seguinte), também fazia parte organizarmos um torneio de tiro aos pratos aí uma vez por mês, quando havia chumbos para isso. Os “pratos” eram para este efeito as latas cilíndricas de conservas, de salsichas, ou de pêssego em calda “Melocotones” etc. As de sardinha e de atum não prestavam para o efeito. Cada um de nós era alternadamente lançador e atirador. O lançador, posicionado por detrás do muro da vinha do Mordomo em plena Av. do Sabor onde moravamos, atirava ao ar aí a uns cinco ou seis metros de altura, uma lata por cada ordem de “larga!” que o atirador lhe gritava. O som claro e característico do embate do chumbo na lata a cada tiro certeiro, era traduzido na sua pontuação e esta registada no fim de cada série. O atirador tinha de fazer tiro em dois estilos: Primeiro partindo da posição de arma à cara, depois partindo da posição de braços em baixo. Estes torneios eram tomados muito a sério. E obtínhamos, perante a óbvia dificuldade em acertar com um simples chumbo numa lata em movimento, resultados impressionantes de cinquenta por cento de acertos ou mais no somatório dos dois estilos. Por vezes faziamos o pleno de cinco em cinco. Era muito divertido e bom para o nosso ego pois, para além de caçadores absolutamente letais, consideravamo-nos exímios como atiradores! Sentiamos que estavamos no auge ou lá perto!

As caçadas de fim de tarde eram interessantes exercícios de tática, precisão e concentração. Cinco, dez, raramente mais, pássaros de cada vez. Serviam também para, durante a escapadela e quando havia, fumar tranquilamente um cigarrito longe dos olhos de toda a gente. Terminavam quando a tarde ou os chumbos chegavam ao fim.

Eram, na esmagadora parte das vezes, caçadas individuais, pois nestas coisas de caça e pesca a companhia só atrapalha. Assim passámos um ano eu e o meu primo até que, um belo dia, já caçadores formados e afirmados, respeitados um pelo outro e em toda a Avenida do Sabor, resolvemos organizar uma caçada a dois aos passarinhos. Mas uma coisa a sério: Sair de casa muito cedo, caçar descendo pelos caminhos das quintas e matas até ao Sabor, encontrar à hora de almoço para merendarmos juntos, regressar a casa ao fim da tarde. Bem, dessa vez entrei em casa com um “rosário” de 42 passarinhos dependurados no pescoço, em voltas que me chegavam aos joelhos. O meu primo, outros tantos.
A Diana 27 não voltou mais a disparar contra nada vivo.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Os ritmos estão cá dentro



Os ritmos são mentais, isto é, são descobertos, pressentidos, organizados pela nossa mente.
Esta afirmação parece-me ser pacífica. Como teorema já me parece de menos fácil demonstração.
A ser assim, então a nossa mente, fisicamente, deve ter estruturas internas (dendrites ou outras estruturas base dos neurónios, por exemplo) que estejam ou possam ser ligados com uma teia de ligações onde esse ritmo se encontra, ou pode ser reproduzido, depois de algum esforço de adaptação, proporcionando então a sua descoberta.
Seria bonito poder ver em tempo real o nosso cérebro a organizar-se em ritmo de valsa, logo depois em ritmo de samba e regresso ao primeiro, tudo isto com visíveis padrões organizacionais ou estruturais, específicos! Lindo!
Corolário deste teorema: A Lógica é um ritmo.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Confissão


Há dias matei um bonsai.
Pronto, está dito!

Uma Chamaecyparis obtusa nana gracilis, nem mais nem menos! Tinha mais de 7 anos de idade e era da família dos ciprestes. Em casa era tratada por Chaminha.

Foi um bonsaicídio involuntrário, tenho que dizer em minha defesa. Assumo que eu o matei porque não acredito na hipótese de suicídio, embora, palavra de honra!, tenha feito tudo o que os meios mais entendidos nestas anãs, recomendam a alguém que assume a responsabilidade de as adoptar. Nunca lhe faltou terra húmida, folhinhas borrifadas uma vez por dia, lugar frente a uma janela com luz directa, todos os mimos...Um zêlo, como mandava a cartilha, que até já tinha gerado lá em casa alguns comentários menos abonadores da minha normalidade!

Ao apará-la com a minha tesoirinha própria (acho eu, pois tinha uma forma anormal e vinha no kit-bonsai!), deixei-lhe três Edas (ramos) baixos, um dos quais torci todo de trás para um dos lados (atrás não ficava nada bem!), com recurso a um arame grosso que também vinha no kit. Este suplício proporcionava um grande resultado ao evidenciar bem as curvas do seu Tachiagari (o baixo-tronco). Assim ela crescesse, que ia ficar, linda!

O resto da copa (a Shin), mais ou menos do meio para cima, desbastei na mesma medida para não haver um desequilíbrio na densidade de folhagem entre os ramos de baixo e esta zona. Qualquer presença ou ameaça de desequilíbrio e o meu bonsai seria remetido para a classe das plantas mal tratadas, com as correspondentes e necessárias consequências na classificação do tratador. E eu prezava-me como promissor tratador de bonsais.

Observava-a regular e prolongadamente, tentando vislumbrar um verde rejuvenescido, descobrir se haveria umas folhinhas novas a rebentar, sinais seguros de que se estava a dar bem. Fotogafava-a até, pois, tendo estudado que era de raça de crescer pouco e muito devagar, aceitava que me fosse difícil, se não impossível, ver diferenças dia a dia. Nunca descortinei um sinal dela para mim neste sentido.

Um dia, lembro-me bem, pareceu-me que estava a começar a mostrar uma cor verde mais pálida! Não, não era da luz! As fotos não enganavam!
Redobrei os meus cuidados: observação duas vezes ao dia (pelo menos), outras tantas borrifadelas (que não lhe faltasse nada!).
Mas nada! Definhou tão galopantemente que em menos de uma semana estava toda da côr da terra!

E lá foram os seus restos vegetais juntar-se aos demais, no compostor.

Se calhar cortei-lhe raizes a mais quando a mudei do seu vaso do horto para o pote bonsai (perdão, para o Hachi). Não, claro que não cortei aí mais do que proporcionalmente já lhe tinha aparado na copa. Como mandam as regras. Mas, ...não sei!

Não viveu o bastante para me tirar desta dúvida!

domingo, 7 de junho de 2009

Ritmos impossíveis de decifrar

A primeira bomba atómica deixou perplexos os Japoneses. Nunca tinham visto nada assim. Nunca tinham sequer imaginado, previsto, que poderia existir nada assim tão destruidor. Foram de tal maneira apanhados de surpresa que compreenderam que não poderiam responder em tempo útil com uma defesa para tal arma. Não tinham a mínima noção da sequência, da lei por detrás da bomba. Capitular foi a única saída.
O ataque do 11 de Setembro (curiosamente contra quem usou pela primeira vez a bomba atómica) tem contornos semelhantes. Deixou perplexos os Americanos (e quase toda a gente!). Nunca tinham visto nada assim. Nunca tinham sequer imaginado, previsto, que poderia existir nada assim tão mau. Foram de tal maneira apanhados de surpresa que compreenderam que não poderiam responder em tempo útil com uma defesa para tal maldade. O terror instalou-se. Não tinham a mínima noção da sequência, da lei por detrás do ataque.
Continuamos (quase todos) sem saber qual a sequência, a lei por detrás daquele ataque. Continuamos sem saída.
Quando não entendemos o ritmo, ficamos à tôa! A inteligência só não chega!

A Música e a Inteligência


Porque gostamos de música?
Esta pergunta é interessantíssima. Como se sabe as notas musicais são sons cujas frequências nos são agradáveis ao ouvido, como as cores são agradáveis à vista. Essas frequências chamadas “fundamentais” constituem as 7 notas musicais (Do Re Mi Fa Sol La Si) assim como na cor existem as cores fundamentais (amarelo vermelho azul preto e branco). Nem cada uma das notas musicais por si só é música nem as cores por si só são pintura. Não há razões para se gostar mais da frequência do Re que da do Sol. Para se fazer música é preciso fazer uma sequência de sons e silêncios, um ritmo (mais um!). Para gostarmos basta ouvirmos um toque de caixa bem ritmado. Satisfaz-nos o gosto básico de ritmos, de sequências previsíveis, descobríveis, e quanto mais intrincado for o ritmo (a sequência a descubrir) mais gozo nos dá adivinha-lo e - supremo gozo! - reproduzi-lo, interpretá-lo em improvisados “tambores” que se encontrem a jeito. Quem não gosta de uma boa “batida” brasileira? Desses ritmos espetaculares que eles inventaram? São lindos! Mesmo sem notas musicais! Só o ritmo!
Bom, agora se a esta sequência linda juntarmos uma outra sequência de notas musicais, gostamos ainda mais! Quanto mais complexa for a sequência a descobrir mais potencial tem de agradar. Dá-nos muito mais gozo a sequência da Primavera de Vivaldi que a do Bailinho da Madeira. Mas para isso temos de “educar o ouvido”! Esta é boa! Educar o ouvido não é mais que a nossa mente (que é quem ouve) a aprender a descobrir sequências cada vez mais complicadas! Quando apesar das várias tentativas não conseguimos entar na sequência (não nos entra no ouvido... o que acontece vulgarmente (a mim sempre) na chamada música contemporânea, a de Jorge Peixinho e quejandos...), não gostamos. Leia-se não conseguimos descodificar a sequência (o “ritmo”...). Quando a sequência é ou muito simples ou já nossa muito conhecida não achamos muita piada e gostamos menos ou dizemos mesmo que não gostamos. Ao fim de ouvir vinte vezes seguidas a mesma sequência musical até a ária das Variações Goldberg de J.S.Bach aborrece. Entrou, e é agora demasiado previsível....Para a voltarmoss a ouvir com prazer precisamos de esquecer um pouco da sequência para a relembrar (a restaurar) com gozo.
Seremos tanto mais virtuosos quanto mais complicada for a sequência que conseguirmos reproduzir. Se o consegue fazer fielmente sem se enganar é um verdadeiro artista. Só o é quem for muito inteligente.
Entre os músicos de jazz há estruturas/temas que são conhecidas/os vulgarmente pelo nome de “seventeens” . Significa apenas que o tema musical (o padrão) completo tem não quatro, cinco ou seis, etc, compassos, mas sim 17! Nem todos se atrevem a improvisar sobre estes temas...Improvisar, mentalmente que seja, sobre uma estrutura de 17 blocos a repetir algumas vezes na peça, sem enganos de entrada ou saída, não está ao alcance de todos.
Só gosta de música quem tem essa fabulosa arma da sobrevivência que é a inteligência.

domingo, 26 de abril de 2009

A descoberta do ritmo, dos ritmos.


Esta é sem dúvida a maior manifestação da nossa inteligência.

A descoberta de um ritmo é interessante do ponto de vista intelectual pois a descoberta de um padrão repetitivo, uma sequência, uma lei, permite, em primeiro lugar, prever o acontecimento que se seguirá a outro, isto é, permite partir do estado que “ainda” é presente e prever o estado que se lhe segue no tempo – permite prever o futuro.

Em segundo lugar permite, em alguns casos, provocar os acontecimentos previsíveis, antecipando a sua ocorrência, encurtando a espera do seu aparecimento natural – permite o controlo do tempo, da dimensão ou da localização temporal do futuro, permite aproximar o futuro.

Em terceiro lugar permite-nos, em determinadas circunstâncias mais favoráveis, alterar o estado futuro, isto é, alterar o próprio futuro, ou, melhor dizendo, permite escolher a alternativa de futuro que nos é mais favorável.

Esta habilidade da inteligência – a intuição - é conhecida por nós e usamo-la contínuamente, mesmo para fazer humor. Consiste em fazer os outros intuir, prever, antecipar, esperar, um dado acontecimento (mais que previsível) e pregar-lhes a partida dizendo-lhes que afinal o que aconteceu não era nada o que estavam a pensar mas outra coisa. Esta coisa é também lógica, seria até também previsível, mas apenas se tivessem usado outra lógica outra sequência que, com apenas os dados que criteriosamente lhes demos, não era possível imaginar à partida... é cómico!

Não sei qual é a altura em que descobrimos os ritmos, as sequências. Pela semelhança na construção lógica não deve ser antes da idade em que somos capazes de simular, representar o papel de outra pessoa que não nós, de fazer o papel de outro, prever a reacção de outra pessoa, etc, que acontece pelos 4-5 anos, creio. Pode ser que haja inclusivé idades de descoberta específicas para cada ritmo. Tenho para mim que estas descobertas são das mais importantes para nós, para a nossa vida.

Não resisto a contar o caso do Joaquim (não me lembro do nome dele), mancebo de 18 anos feitos, pastor desde puto e, naquela altura, “meu” recruta de instrução de Ordem Unida - os vários movimentos colectivos que, marchando, um grupo de militares executa síncronamente numa parada.

Pois bem, no final da primeira aula todos os recrutas sabiam marcar passo ao ritmo dos meus comandos, “um, dois, esquerda, direita, um -- um -- um, dois, esquera, direita”. Todos marchavam síncronos, todos sabiam acertar o passo depois de um engano. Todos, excepto o Joaquim, que não acertava uma batida que fosse! Nem uma!

Não era trocar o passo, coisa que, principalmente na primeira aula, acontece mesmo aos mais certinhos ou mais afoitos. Não, o Joaquim pura e simplesmente não acertava nada! Eu julgava até ser impossível o não se acertar de vez em quando, mas bater as botas no chão sempre fora do tempo, até parecia provocação.

A princípio recebeu o respectivo tratamento “insultuoso” que eu, como instrutor militar que se prezava, reservava aos que se enganavam ou demoravam mais a entrar no ritmo. A dada altura, ou porque já levava esgotados os tratamentos especiais do meu portfólio, ou porque me apercebi que não era destes tratamentos que o mal do Joaquim precisava, ordenei ao recruta que saísse da formação e se sentasse até ao fim da aula aguardando uma comunicação que eu lhe queria fazer.

No final da instrução mandei os outros dispersar e fui ter com o Joaquim. A minha ideia era “No meio do grupo é capaz de ser demasiada pressão para ele, nada habituado ás confusões da cidade, mas com uma aulinha individual este gajo vai lá!”.

Nada mais falso! Qual aula individual qual quê? Aconteceu exactamente o que acontecera na formação de grupo. O extraordinário era que o Joaquim, sempre com aquela cara de esforço de quem tenta mas não consegue, mostrava que queria acertar com o passo de marcha mas, pura e simplesmente, não sabia como o fazer.

Nem eu como lho ensinar!

Mandei-o ficar à vontade e, para descontrair e eu pensar numa solução para o “nosso” problema, meti conversa. O que fazia, donde vinha, etc. Finda a escola o pai pusera-o de pastor, até ser chamado. Nunca marchara nem de brincadeira com os colegas da escola, que tinham sido muito poucos e nenhum da mesma idade. Brincar muito pouco ou nada e quase sempre sozinho.

Fiz-lhe ver que o ritmo de marcha até era um ritmo musical, tal como outros, o tango a valsa, embora não fosse muito apropriado para se dançar.

Gostei desta comparação e tive uma ideia! Mas ele sabia dançar, não é verdade? Nada, nunca dançara! OK, não é mal nenhum, mas bata lá palmas ao ritmo de uma canção qualquer que saiba cantar. Não se lembrava de nehuma! Comecei a perder as esperanças... Bom, disse-lhe num tom que transmitia confiança, já ouviu tocar de certeza o Bailinho da Madeira!? Naquela cara de espanto dele nada mudou, nem um sinal. Baixou os olhos.

Não me resignei. Este caso requeria medidas drásticas! Com que cara poderia eu explicar ao capitão que não era capaz de pôr um recruta a marchar como deve ser? Seria inédito! Mesmo que se tratasse de algo patógénico, obviamente não me livrava de uma vergonha.

Estavamos numa zona anexa à parada, que era também campo de futebol, separada dela por uma densa sebe de abetos que nos tapavam as vistas do quartel e a uma distância que garantia que de lá não nos ouviriam. Atirei-me prá frente! Joaquim, eu vou cantar o Bailinho da Madeira e você vai-se lembrar de certeza da música, toda a gente a conhece, homem! Bata palmas ao ritmo da música. Comecei a cantar e ao mesmo tempo gesticulando os movimentos de um maestro de banda filarmónica.

Deixai passar,
Esta linda
Brincadeira
Que amanhã
Vamos bailar
O bailinho
Da Madeira.

O Joaquim não sabe como começar. Fica com as mãos abertas no ar como quem vai receber uma bola, hesita em juntá-las, como se tivesse medo de errar o momento certo para o fazer. Entretanto cheguei ao fim do refrão e nem uma só palma o Joaquim bateu! Mas continuava a esforçar-se e isso fez-me mudar de gestos de maestro para o bater de palmas, num recomeço da mesma letra, pedindo-lhe que me seguisse!

Milagre! Motivado pelo som das minhas palmas o Joaquim começou a bater palmas, primeiro sem qualquer ritmo, depois fora de ritmo, a contratempo, depois imitando os meus gestos, adivinhando quando eu ia juntar as mãos, sem ligar à cantiga, e depois, imaginem, mesmo se eu parava, já sozinho ao ritmo da minha cantoria! E sorria! E de repente já dançavamos os dois! Ah grande Joaquim! Ali a bater o pé ao ritmo do Bailinho da Madeira!

O homem tinha finalmente descoberto um ritmo musical, um ritmo temporal! Algo que até aos seus 18 anos lhe tinha sido vedado descobrir! Como tal tinha sido possível?

A partir daqui os progressos foram exponenciais. Uma passagem rápida por um Malhão, para consolidar a aprendizagem, e de imediato para o “um, dois, esquerda, direita” que o rapaz acertou à primeira, para grande satisfação e enorme alívio de ambos. Duas passagens para um e outro lado e “Alto! Descansar!” Estavamos um frente ao outro. Ok, Joaquim, vá treinando a marcha na caserna, na parada, onde puder. Pode dispersar!
Na instrução seguinte de Ordem Unida o Joaquim era um entre os todos os outros. A mais, apenas um brilhozinho cúmplice no nosso olhar.

domingo, 19 de abril de 2009

Uma mensagem

Não deve ser preciso escrever-se muito para se ser ouvido. O Bob Dylan escreveu uma ou duas duzias de poemas, letras de canções, que juntos não dariam para mais de outras tantas páginas, e no entanto, fez-nos descobrir coisas que nem sonhávamos podiamos descobrir – havia, para ele, uma mensagem a transmitir, e para nós, uma mensagem a receber.