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domingo, 26 de abril de 2009

A descoberta do ritmo, dos ritmos.


Esta é sem dúvida a maior manifestação da nossa inteligência.

A descoberta de um ritmo é interessante do ponto de vista intelectual pois a descoberta de um padrão repetitivo, uma sequência, uma lei, permite, em primeiro lugar, prever o acontecimento que se seguirá a outro, isto é, permite partir do estado que “ainda” é presente e prever o estado que se lhe segue no tempo – permite prever o futuro.

Em segundo lugar permite, em alguns casos, provocar os acontecimentos previsíveis, antecipando a sua ocorrência, encurtando a espera do seu aparecimento natural – permite o controlo do tempo, da dimensão ou da localização temporal do futuro, permite aproximar o futuro.

Em terceiro lugar permite-nos, em determinadas circunstâncias mais favoráveis, alterar o estado futuro, isto é, alterar o próprio futuro, ou, melhor dizendo, permite escolher a alternativa de futuro que nos é mais favorável.

Esta habilidade da inteligência – a intuição - é conhecida por nós e usamo-la contínuamente, mesmo para fazer humor. Consiste em fazer os outros intuir, prever, antecipar, esperar, um dado acontecimento (mais que previsível) e pregar-lhes a partida dizendo-lhes que afinal o que aconteceu não era nada o que estavam a pensar mas outra coisa. Esta coisa é também lógica, seria até também previsível, mas apenas se tivessem usado outra lógica outra sequência que, com apenas os dados que criteriosamente lhes demos, não era possível imaginar à partida... é cómico!

Não sei qual é a altura em que descobrimos os ritmos, as sequências. Pela semelhança na construção lógica não deve ser antes da idade em que somos capazes de simular, representar o papel de outra pessoa que não nós, de fazer o papel de outro, prever a reacção de outra pessoa, etc, que acontece pelos 4-5 anos, creio. Pode ser que haja inclusivé idades de descoberta específicas para cada ritmo. Tenho para mim que estas descobertas são das mais importantes para nós, para a nossa vida.

Não resisto a contar o caso do Joaquim (não me lembro do nome dele), mancebo de 18 anos feitos, pastor desde puto e, naquela altura, “meu” recruta de instrução de Ordem Unida - os vários movimentos colectivos que, marchando, um grupo de militares executa síncronamente numa parada.

Pois bem, no final da primeira aula todos os recrutas sabiam marcar passo ao ritmo dos meus comandos, “um, dois, esquerda, direita, um -- um -- um, dois, esquera, direita”. Todos marchavam síncronos, todos sabiam acertar o passo depois de um engano. Todos, excepto o Joaquim, que não acertava uma batida que fosse! Nem uma!

Não era trocar o passo, coisa que, principalmente na primeira aula, acontece mesmo aos mais certinhos ou mais afoitos. Não, o Joaquim pura e simplesmente não acertava nada! Eu julgava até ser impossível o não se acertar de vez em quando, mas bater as botas no chão sempre fora do tempo, até parecia provocação.

A princípio recebeu o respectivo tratamento “insultuoso” que eu, como instrutor militar que se prezava, reservava aos que se enganavam ou demoravam mais a entrar no ritmo. A dada altura, ou porque já levava esgotados os tratamentos especiais do meu portfólio, ou porque me apercebi que não era destes tratamentos que o mal do Joaquim precisava, ordenei ao recruta que saísse da formação e se sentasse até ao fim da aula aguardando uma comunicação que eu lhe queria fazer.

No final da instrução mandei os outros dispersar e fui ter com o Joaquim. A minha ideia era “No meio do grupo é capaz de ser demasiada pressão para ele, nada habituado ás confusões da cidade, mas com uma aulinha individual este gajo vai lá!”.

Nada mais falso! Qual aula individual qual quê? Aconteceu exactamente o que acontecera na formação de grupo. O extraordinário era que o Joaquim, sempre com aquela cara de esforço de quem tenta mas não consegue, mostrava que queria acertar com o passo de marcha mas, pura e simplesmente, não sabia como o fazer.

Nem eu como lho ensinar!

Mandei-o ficar à vontade e, para descontrair e eu pensar numa solução para o “nosso” problema, meti conversa. O que fazia, donde vinha, etc. Finda a escola o pai pusera-o de pastor, até ser chamado. Nunca marchara nem de brincadeira com os colegas da escola, que tinham sido muito poucos e nenhum da mesma idade. Brincar muito pouco ou nada e quase sempre sozinho.

Fiz-lhe ver que o ritmo de marcha até era um ritmo musical, tal como outros, o tango a valsa, embora não fosse muito apropriado para se dançar.

Gostei desta comparação e tive uma ideia! Mas ele sabia dançar, não é verdade? Nada, nunca dançara! OK, não é mal nenhum, mas bata lá palmas ao ritmo de uma canção qualquer que saiba cantar. Não se lembrava de nehuma! Comecei a perder as esperanças... Bom, disse-lhe num tom que transmitia confiança, já ouviu tocar de certeza o Bailinho da Madeira!? Naquela cara de espanto dele nada mudou, nem um sinal. Baixou os olhos.

Não me resignei. Este caso requeria medidas drásticas! Com que cara poderia eu explicar ao capitão que não era capaz de pôr um recruta a marchar como deve ser? Seria inédito! Mesmo que se tratasse de algo patógénico, obviamente não me livrava de uma vergonha.

Estavamos numa zona anexa à parada, que era também campo de futebol, separada dela por uma densa sebe de abetos que nos tapavam as vistas do quartel e a uma distância que garantia que de lá não nos ouviriam. Atirei-me prá frente! Joaquim, eu vou cantar o Bailinho da Madeira e você vai-se lembrar de certeza da música, toda a gente a conhece, homem! Bata palmas ao ritmo da música. Comecei a cantar e ao mesmo tempo gesticulando os movimentos de um maestro de banda filarmónica.

Deixai passar,
Esta linda
Brincadeira
Que amanhã
Vamos bailar
O bailinho
Da Madeira.

O Joaquim não sabe como começar. Fica com as mãos abertas no ar como quem vai receber uma bola, hesita em juntá-las, como se tivesse medo de errar o momento certo para o fazer. Entretanto cheguei ao fim do refrão e nem uma só palma o Joaquim bateu! Mas continuava a esforçar-se e isso fez-me mudar de gestos de maestro para o bater de palmas, num recomeço da mesma letra, pedindo-lhe que me seguisse!

Milagre! Motivado pelo som das minhas palmas o Joaquim começou a bater palmas, primeiro sem qualquer ritmo, depois fora de ritmo, a contratempo, depois imitando os meus gestos, adivinhando quando eu ia juntar as mãos, sem ligar à cantiga, e depois, imaginem, mesmo se eu parava, já sozinho ao ritmo da minha cantoria! E sorria! E de repente já dançavamos os dois! Ah grande Joaquim! Ali a bater o pé ao ritmo do Bailinho da Madeira!

O homem tinha finalmente descoberto um ritmo musical, um ritmo temporal! Algo que até aos seus 18 anos lhe tinha sido vedado descobrir! Como tal tinha sido possível?

A partir daqui os progressos foram exponenciais. Uma passagem rápida por um Malhão, para consolidar a aprendizagem, e de imediato para o “um, dois, esquerda, direita” que o rapaz acertou à primeira, para grande satisfação e enorme alívio de ambos. Duas passagens para um e outro lado e “Alto! Descansar!” Estavamos um frente ao outro. Ok, Joaquim, vá treinando a marcha na caserna, na parada, onde puder. Pode dispersar!
Na instrução seguinte de Ordem Unida o Joaquim era um entre os todos os outros. A mais, apenas um brilhozinho cúmplice no nosso olhar.

domingo, 19 de abril de 2009

Uma mensagem

Não deve ser preciso escrever-se muito para se ser ouvido. O Bob Dylan escreveu uma ou duas duzias de poemas, letras de canções, que juntos não dariam para mais de outras tantas páginas, e no entanto, fez-nos descobrir coisas que nem sonhávamos podiamos descobrir – havia, para ele, uma mensagem a transmitir, e para nós, uma mensagem a receber.