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quinta-feira, 18 de junho de 2009

A caçada


Pela passagem no exame do 5º ano do Liceu, eu e o meu primo Manuel António combinámos (o que um tinha o outro também tinha que ter...) pedir de prenda uma “pressão de ar”. O pai dele, que era caçador devoto, alinhou prontamente na ideia. O meu não achou piada nenhuma e, sem nunca a ter recusado, tentou convencer-me da minha má escolha. E deu-se início a mais um dos nossos normais períodos de discussão, que duravam dias, cada um de nós a puxar para seu lado, a ver quem resistia por mais tempo.

O modelo a eleger, por recomendação do pai do meu primo, seria uma Diana 27. Nada menos de 17.25 polegadas de cano estriado! Uma referência de precisão nas espingardas de pressão da sua classe. Os melhores armeiros, e também com preço mais em conta por serem conhecidos do meu tio comissário da polícia, eram no Porto.

Enquanto eu e meu pai nos decidíamos foi encomendada a do meu primo, que já não aguentava mais esperar. Foi mesmo o meu pai quem tratou do assunto com o meu tio. E um dia, ainda eu e o meu pai não tinhamos desatado a pega, lá chegou ela na carreira do Cabanelas! Que bonita! Novinha em folha, com uma etiqueta beje pendurada no aro de protecção do gatilho e a cheirar a óleo de máquina!
Excitadíssimos, eu e o meu primo experimentámo-la até quase gastar uma caixa de chumbos. Era extraordinária. Acertava numa carica a dez passos! Que precisão!
Uma semana depois o meu pai cedia e mandava vir a minha pelo mesmo caminho.

A caça aos pássaros, pardais na maioria, e o tiro, rapidamente se tornaram no meu desporto favorito e todos os tostões que amealhava eram agora repartidos para ir à mercearia comprar cigarros Porto a vulso (quem é que chegava ao preço de um maço inteiro? Só no Natal ou nos anos!), e para chumbos, também a vulso, claro, na Casa Guerra – Caça e Pesca da Rua Alexandre Herculano, dos “Kugleun...Made in Germany”, marca Diabolo, os melhores, os únicos em que acreditávamos.

Para além de saídas frequentes aos fins de tardes aos passarinhos, que rendiam regularmente uma boa meia duzia de vítimas engatadas em rosário (as tíbias de uma nas narinas da seguinte), também fazia parte organizarmos um torneio de tiro aos pratos aí uma vez por mês, quando havia chumbos para isso. Os “pratos” eram para este efeito as latas cilíndricas de conservas, de salsichas, ou de pêssego em calda “Melocotones” etc. As de sardinha e de atum não prestavam para o efeito. Cada um de nós era alternadamente lançador e atirador. O lançador, posicionado por detrás do muro da vinha do Mordomo em plena Av. do Sabor onde moravamos, atirava ao ar aí a uns cinco ou seis metros de altura, uma lata por cada ordem de “larga!” que o atirador lhe gritava. O som claro e característico do embate do chumbo na lata a cada tiro certeiro, era traduzido na sua pontuação e esta registada no fim de cada série. O atirador tinha de fazer tiro em dois estilos: Primeiro partindo da posição de arma à cara, depois partindo da posição de braços em baixo. Estes torneios eram tomados muito a sério. E obtínhamos, perante a óbvia dificuldade em acertar com um simples chumbo numa lata em movimento, resultados impressionantes de cinquenta por cento de acertos ou mais no somatório dos dois estilos. Por vezes faziamos o pleno de cinco em cinco. Era muito divertido e bom para o nosso ego pois, para além de caçadores absolutamente letais, consideravamo-nos exímios como atiradores! Sentiamos que estavamos no auge ou lá perto!

As caçadas de fim de tarde eram interessantes exercícios de tática, precisão e concentração. Cinco, dez, raramente mais, pássaros de cada vez. Serviam também para, durante a escapadela e quando havia, fumar tranquilamente um cigarrito longe dos olhos de toda a gente. Terminavam quando a tarde ou os chumbos chegavam ao fim.

Eram, na esmagadora parte das vezes, caçadas individuais, pois nestas coisas de caça e pesca a companhia só atrapalha. Assim passámos um ano eu e o meu primo até que, um belo dia, já caçadores formados e afirmados, respeitados um pelo outro e em toda a Avenida do Sabor, resolvemos organizar uma caçada a dois aos passarinhos. Mas uma coisa a sério: Sair de casa muito cedo, caçar descendo pelos caminhos das quintas e matas até ao Sabor, encontrar à hora de almoço para merendarmos juntos, regressar a casa ao fim da tarde. Bem, dessa vez entrei em casa com um “rosário” de 42 passarinhos dependurados no pescoço, em voltas que me chegavam aos joelhos. O meu primo, outros tantos.
A Diana 27 não voltou mais a disparar contra nada vivo.

2 comentários:

  1. Lindo, lindo... fez-me viajar as minhas memorias de infancia... continue!!!

    A menina de NY ;)

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  2. Nesta história gostei sobretudo do final feliz...porque a caça aflige-me (é o termo adequado)

    A forma como a contas permite imaginar os cenários, sentir o vosso entusiasmo, a ansiedade, então a "luta" com o pai pelo presente! Tive uma "luta" assim mas nunca ganhei a bicicleta!!!

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