Translate

domingo, 29 de novembro de 2009

O Nosso Muro de Berlim



Em Setembro de 1988, enquanto estava em estágio na República Federal Alemã, a Guida foi-me visitar. Dos muitos passeios que fizemos, um foi a Berlim e Praga, com vistos da República Checa nos nossos passaportes que, avisada e atempadamente, garantimos antes de sair de Portugal. Os vistos eram precisos, não para atravessar a RDA indo da RFA para Berlim Oeste - essa “ilha” da RFA no meio do “mar” RDA - mas para entrar na República Checa. A Berlim Leste, ao outro lado do Muro, não iríamos por falta de tempo e de interesse, pois queriamos ver Dresden, em trânsito como era apenas permitido, e visitar Praga, tudo nesse fim-de-semana.


Em Berlim Oeste fizemos o habitual sight-seeing tour e, num dos poucos passeios a pé que se lhe seguiram, fomos meditar para uma espécie de miradouro do Muro, junto do qual passava um dos muros de segurança erguidos paralelos ao Muro de Berlim própriamente dito. Aí relembrámos, sempre em silêncio, sem palavras, as atrocidades nazis, o atraso estúpido dos regimes comunistas de leste e, quase em carne viva, as vítimas da liberdade que o Muro, aquele mesmo, ali mesmo à nossa frente, já tinha feito e continuaria a fazer. Obviamente deixámos nele escritas as nossas mensagens de “morte ao muro!” e “abaixo o muro!” entre muitas outras assim, que o tingiam de alto a baixo e em todo o seu comprimento.


De uma das fendas que o muro exterior tinha, trouxemos uma pequena pedra, pouco maior que um dedal, que tinha um bocadinho de tinta cinza-azulada no lado mais plano.


A pedrinha, à qual saudosa e carinhosamente chamávamos o Nosso Muro de Berlim, chegou a casa no meio das bujigangas da nossa viagem. Contráriamente à maior parte dos “calhaus” que, para recordação, eu teimo em transportar das serras e praias que visitamos – alguns bem pesados – esta pedra era muito pequenina, um pedacinho de cimento apenas. Nem dava para nela se escrever Berlim-1988, para a documentar. Portanto rapidamente desapareceria se não fosse tratada como uma “relíquia”, posta sobre um pedestal ou numa caixinha transparente a fazer de redoma.


Numa caixinha a pedra andaria aos trambolhões mal lhe pegássemos, para a ver ou mostrar aos amigos. Optei pela primeira solução. Depois de umas tentativas de escolha de materiais qualificáveis para o efeito, resolvi usar, para o improvisado pedestal, uma tampa em acrílico de um frasco de perfume da Guida. Tinha o aspecto de um vidro grosso, dobrado em “L”, maior de um lado que do outro, transparente, cristalina. Enfim, a tampa tinha um design tal, que, deitada, parecia mesmo feita para aquilo!


Colei-lhe o bocadinho do Muro numa gota de cola termoplástica. Ficou com um certo aspecto de “souvenir” profissional, mais até do que era desejável, mas, contudo, apresentável sem enxovalhar muito o Muro, e passou a bibelot numa das prateleiras altas da estante do escritório.


Um belo dia, alguns anos depois, ao tirar um livro lá de cima sem recurso a cadeira ou escadote, mandei ao chão a peanha com o Muro de Berlim, que no acto se soltou da cola, e se fez em dois pedaços. Peguei nas duas peças com cuidado e, enquanto não arranjava vagar para refazer a minha “obra de arte”, coloquei-as em cima da cómoda da sala, no meio dos nossos retratos de família.


Passaram-se dias, mais esquecidos que ocupados, até que numa dada altura reparei que uma das peças – o Muro propriamente dito - tinha desaparecido de cima da cómoda.
Fui ter com a Guida ao escritório.
- Guida, mexeste no nosso Muro de Berlim?

A Guida não tinha mexido em nada e agora que eu perguntava reparava que já não via a pedra havia dias.

- Pergunta à Conceição, com as limpezas pode tê-lo mudado de sítio.


A Conceição, então uma senhora de setenta e muitos anos, era nossa empregada de casa havia mais de 20 anos, desde um pouco antes do nascimento da Inês.


A palavra “limpezas” quando invocada enquanto havia algo desaparecido em casa fazia-me entrar em pânico. Temi o pior e, em pleno stress póstraumático, chamei:

- Ó Dona Conceição.

- Sim, Sr. Engenheiro.

Respondeu-me da copa, estava a passar a ferro. Perguntei então da sala com um tom de voz muito suave, como quem pede um favor, como quem faz uma prece.

- Reparou num pedacinho de cimento que estava em cima da cómoda, no meio das fotografias?

- Cimento? Ah, sim, Sr. Engenheiro. Limpei tudo antesdontem.


Levei as mãos à cara enquanto fechava os olhos e respirava fundo sustendo a respiração. A boa Dona Conceição, estranhando o meu silêncio perguntou enquanto se assomava à porta da sala.

- Porquê, Sr. Engenheiro? - Percebia-se-lhe na voz um receio de que teria feito uma asneira. - Fazia-lhe falta?

Expirei prolongadamente. Ainda mal refeito, retorqui.

- Não, nada, Conceição. Aquele cimento - suspirei – nunca fez falta nenhuma!

Sem comentários:

Enviar um comentário