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quinta-feira, 4 de março de 2010

A bicicleta

Esta história não se passou comigo. Passou-se com o meu amigo Fernando que ma contou numa roda de café há vinte anos atrás, tinha ela acontecido havia pouco tempo. Desde então, por inúmeras vezes me tem vindo à lembrança e, sempre que vem a talhe de foice, a tenho contado entre amigos. Acho-a deliciosa. Vou por isso pedir licença ao Fernando e narra-la uma vez mais, agora aqui.

O Fernando e a família eram visita regular, em tempo de férias de verão, duma quinta no Alentejo, propriedade de uns seus tios afastados de Lisboa onde viviam a meio tempo. Fazendo termo com a estrada nacional, tinha nesta uma entrada feita de um portal de muros brancos, com dois rododendros rosa em vez de portão, logo seguidos de uma alameda de amendoeiras e pessegueiros ladeando o caminho até ao pátio em frente à casa.

Era um Monte bem arranjado com uma casa de dois pisos, uma horta e jardim dos dois lados de um grande tanque agora transformado em piscina. Além de um lagar, uma vacaria e acomodações para outros animais, constituíam partes da exploração agrícola uma vinha, um olival, vários hectares de trigo e umas centenas largas de sobreiros. Como herdade, era bastante grande para manter alguns trabalhadores permanentes e um feitor.
Que era o Sr. Francisco: Homem dos seus cinquenta e muitos, tinha de casa mais de trinta anos. E esta, aproximadamente, era também a idade da sua bicicleta. Muito conservada, era ainda hoje o seu favorito e único meio de transporte para todo o lado, tirando o tractor.

Do terraço, à entrada do segundo piso, avistava-se todo o campo até à estrada e uma ampla parte da propriedade à volta da casa. Uma imagem das férias que o meu amigo guardava com gosto na memória, era a do Sr. Francisco, regressando da vila, ao longe, a entrar na quinta subindo pela leve inclinação da alameda das amendoeiras, silenciosamente, vagarosamente, até chegar, alçar a perna e se deter junto da escadaria da casa.

Aconteceu que, no verão do ano anterior àquele em que nos contava esta história, chegados à quinta viram, pasme-se!, o Sr. Francisco subir a dita alameda, não de bicicleta, não tão vagarosa e muito menos silenciosamente, mas em cima de uma motorizada, nova em folha.

-"Ainda me estou a habituar, mas tinha que ser" respondeu o Sr. Francisco, interpelado pelo meu amigo em jeito de parabéns pelo progresso verificado. -"Pois então não era já tempo Sr. Francisco? Claro que sim!" Apoiou o Fernando sentindo uma certa mágoa, quiçá um arrependimento, na expressão do ti Francisco. -"Vamos andando e vamos vendo", rematou ele e, desse modo, a conversa entre ambos.

E assim, aquela quase bucólica imagem do Feitor rolando de bicicleta pelo caminho da herdade, foi-se desvanescendo na lembrança do meu amigo.

As férias do verão seguinte esperavam-nos com uma nova surpresa: mal chegados, os seus tios comunicaram-lhes entre sorrisos: -"Sabem uma coisa? O Feitor vendeu a mota e voltou para a sua bicicleta! É verdade! Parece que não se ajeitou". "Não se ajeitou?" repetiu para si o meu amigo sem perceber a dificuldade de, neste caso, se passar de burro para cavalo. "Tenho de tirar isso a limpo com o ti Francisco", pensou.

Já refeito do choque da inesperada notícia, o Fernando sentiu até um certo contentamento com a esperança breve de recuperar uma imagem cuja recordação lhe era agradável. Mas queria saber, tinha que saber, pelo próprio as razões do, aparentemente ilógico, retrocesso na decisão.
Logo que apanhou o Feitor de feição foi falar com ele. -"Então Sr. Francisco, outra vez de bicicleta?" -"É verdade Sr. Fernando." -"Não gostou da motorizada? Não andava bem?" -"Ela andava." -"E então?" Encolhendo os ombros o homem justificou-se. -"Eu é que chegava sempre antes de querer..."

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